Brasília, a cidade-sonho captada por Luis Humberto
O Estado de S. Paulo, 18 de agosto de 1981
Brasília — cidade lunar. Formas geométricas, deslizantes, suaves, polidas cortam o espaço e coabitam com o silêncio do homem, só. Luis Humberto, fotógrafo, nas primeiras páginas do seu livro Brasília: sonho do Império, capital da República, deixa livremente “abrasiliar” (pousar?) os astronautas — pedestres que chegam de todos os cantos do Brasil para se dissolverem dentro da cidade-sonho, do império. As silhuetas, transformadas em pequenos elementos urbanos, movem-se (não vivem, se deslocam apenas) ao longo dos traçados geométricos que rasgam o espaço. E de repente a vida penetra dentro da cidade através de um pulo da criança dentro do papel fotográfico.
Os edifícios transformados em décor se afastam e, meros observadores, acompanham de longe o dinamismo vitalizador do correr, atravessar e escapar da criança das ruas da cidade e do espaço fotográfico. As pessoas captadas pela percepção aguçada pela percepção do fotógrafo seguem, dentro da imagem, as linhas de composição rigorosa. Mas ficam “sequestradas” apenas por um instante só, para receber um impulso centrífugo, ultrapassar os limites do papel fotográfico e se lançar ao encontro do leitor. Às vezes, a foto dá a impressão de um fragmento visual, parte de uma sequência, de um filme imaginário. O caminhar das pessoas-imagens foge do controle do fotógrafo, que cede lugar à criatividade e imaginação do leitor. É este que estruturará as fotos inexistentes geradas pelo dinamismo da imagem-fonte.
São “gente” e políticos, uma espécie humana à parte, que habitam as fotos de Luis Humberto. O fotógrafo, pela diagramação simples e sensível, joga, uma ou outra vez, dentro do mundo dos “vivos” que participam e protestam, os que, olhar “severino”, apenas esperam. Aquela presença visual escassa de miséria faz com que ela se torne mais pungente. Os políticos, sob o olhar sorridente do fotógrafo, se transformam em gente. Atores inatos, eles continuam a sua representação no palco público, mas se deixam surpreender nas suas expressões humanas: tédio, pasmo, exuberância, desencanto, procura vã dos horizontes novos. Nesta fatia do trabalho, há algo que lembra os primeiros instantâneos das personalidades do mundo político feitos por Erich Salomon por volta de 1930. Na sua ausência, os acontecimentos diplomáticos perdiam o impacto. Da mesma forma os diálogos, cochichos, conversas e desconversas — os pratos do dia do Congresso — perderiam o seu sabor sem a presença de Luis Humberto.
Luis Humberto — editor-fotográfico — obriga o leitor indisciplinado à leitura ordenada. É bom aprender a não confundir o livro de fotografias com o assim frequentemente chamado “álbum de fotos”, que daria ao leitor o direito de um folhear disperso.
Luis Humberto, na concepção e execução do livro, fica coerente com as “notas e ideias nem sempre convergentes sobre a fotografia e ideologia”, o seu depoimento feito este ano durante o II Colóquio Latino-Americano de Fotografia no México: “É hora de deixarmos de nos preocupar em impor compromissos à fotografia para o cumprimento dos quais ela não se destina, e entendermos, finalmente, que sua verdadeira importância está na possibilidade de ser usada como caminho para compreendermos a vida”.
12 de fevereiro de 2021. Uma notícia se espalhou como um rastilho de pólvora: o mais querido dos fotógrafos brasileiros acabara de partir para o fundo infinito. Metáforas à parte, Luis Humberto Miranda Martins Pereira, nascido no Rio de Janeiro em 1934, faleceu esta madrugada em Brasília. Um dos maiores nomes da fotografia brasileira da segunda metade do século 20, ele desenvolveu ainda intensa atividade como professor da Universidade de Brasília, da qual foi cofundador, editor, ensaísta, crítico e tutor de inúmeros jovens, estudantes e fotógrafos, que tiveram a oportunidade de conviver com sua incrível capacidade de pensar o presente com perspectiva histórica.
Luis Humberto foi um incansável batalhador pela organização e pelo reconhecimento profissional do fotógrafo brasileiro. Na década de 1970, foi um dos fundadores da União dos Fotógrafos de Brasília, uma iniciativa pioneira de organização da sociedade civil, ainda em plena ditadura. Nesse período, sob a rigorosa censura imposta pelos militares, construiu uma das mais importantes e consistentes documentações da política cotidiana de Brasília. Com fina ironia, insinuada nas entrelinhas, trouxe vida inteligente para o jornalismo fotográfico do período, sempre com irreverência e criatividade.
A censura, preocupada com os textos e seus conteúdos, era absolutamente analfabeta na leitura das imagens. E foi aproveitando as brechas possíveis que Humberto criou imagens, hoje emblemáticas, nas quais a informação era certeira e contundente. Nelas vemos e entendemos com clareza a liturgia do poder. Seu primeiro livro – Brasília: sonho do Império, capital da República (1980) – é, com certeza, o discurso visual mais lúcido e politizado dos anos de chumbo no país. A publicação mostra sua luta sem fim contra os absurdos da ditadura e traz a fotografia de volta ao universo da inteligência e do sensível.
Como defendeu inúmeras vezes, “a fotografia está sempre procurando descobrir o desconhecido, revisitar a vulgaridade, resgatar uma importância não percebida e doar aos outros o resultado de suas investigações. A fotografia não resulta em detritos, mas em extratos que se tornam, uma vez organizados de forma coerente, indicativos preciosos para o entendimento do permanente enigma que é a vida.”
Arquiteto formado pela Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), passou a se dedicar integralmente à fotografia como profissão após uma rápida experiência com a arquitetura. Chegou a Brasília no início dos anos 1960 e trabalhou na equipe encarregada de projetar o campus da Universidade de Brasília (UnB), sob o comando de Darcy Ribeiro, que sonhava com um novo projeto para a educação superior no Brasil. Um sonho concretizado parcialmente, interrompido com violência e terror pela sanha fascista que tomou conta do país em 1964. E desmoronado definitivamente após a publicação do Ato Institucional n˚ 5, editado em 13 de dezembro de 1968.
De 1962 a 1965, foi professor assistente da UnB. Em 1964, instalou o Ateliê de Fotodocumentação do Instituto Central de Artes e, em 1965, foi um dos responsáveis pelo curso de técnica fotográfica. De 1968 a 1978, foi fotógrafo da Editora Abril, trabalhando principalmente para a revista Veja. Em 1969, foi diretor de arte e de fotografia da agência Promove, em Brasília. Também foi diretor de arte e editor de fotografia do Jornal de Brasília a partir de 1973. Entre 1978 e 1982, foi fotógrafo da revista IstoÉ. A partir de 1980, até 1985, assumiu a chefia de fotoimagem do Hospital de Doenças do Aparelho Locomotor do Hospital Sarah Kubitschek. Em 1985, também dirigiu a Fundação Cultural do Distrito Federal. Entre 1975 e 2000, escreveu pequenos ensaios de fotografia para as revistas Fotografia, Iris e Fotóptica, entre outras. E, de 1986 até 2003, manteve vínculo com a Universidade de Brasília.





